Enquanto percorro caminhos e corredores, eu vejo. Como se janelas se abrissem, suas almas mostram-se por trás das pálpebras, sem um vestígio sequer de pudor. Cercam-me e eu me acerco delas, num daqueles jogos de ambigüidades puramente instintivos. Entrelaçamos dedos e pernas e corpos e, no instante seguinte, somos um só - e é quando eu vejo. É quando eu sou.
Eu determino a carícia dos dedos bem-manicurados da mulher que se liberta da prisão de seu tailleur e sua moral. Eu guio sua mão enquanto ela, largada no caríssimo sofá do apartamento de classe média alta, ergue a própria saia e permite que suas coxas sejam alisadas por um amante imaginário – e então mais outro e mais três, representações de todos os homens baixos e vis aos quais ela jamais se entregaria. Apenas eu ouço as obscenidades que ela geme, antes que elas se percam na meia luz.
E eu mergulho através das cortinas de voal, minha visão alcançando cada sombra. Torno-me as palavras sujas que ela adora ouvir ao pé do ouvido, me transformo no movimento de quadris angustiantemente lento que o tira do sério. Faço parte de cada gesto no ritual antigo e complexo que os dois desenham com perfeição sobre um leito anônimo, que não vai deixar vestígios. Ele sabe que não é certo, mas que certeza resiste a suspiros carregados de ânsia? Ela, por sua vez, também sabe, mas já é tarde demais (já houve tempo demais) para se arrepender. Eles brindam a mim com seu sexo, mil vezes mais sublime que o que eles encontram em casa, com seus cônjuges cinzentos e inexpressivos.
No breu das janelas cerradas e blecautes, quando não se espera me encontrar no rosto fraterno, eu me guio pelo tato. Sob a manta grossa, aninho em meu peito os dois jovens corpos que dividem sangue, quarto, cama e insônia. Impaciência e curiosidade infantis ganham meus contornos, enquanto mãos experimentam pele e carne fresca e rija, um conforto na solidão noturna onde o resto do mundo se dissolve e os deixa sozinhos. É a minha voz nos suspiros que eles mal entendem, nos toques desajeitados e impensados, no segredo a mais que eles dividem – o mais precioso de todos. O alívio vem nos meus braços e só então eu corro para ganhar as ruas, enquanto eles finalmente dormem.
Vitrines. Objetos expostos ao longo de avenidas nas noites de uma capital esquecida, com saltos que ecoam por onde passo. E lá, ela gosta de ser um produto, de deixar-se observar nas estações de metrô. Ela me busca nos olhos dos homens que a devoram, que mergulham em seus decotes e suas fendas. Os homens que ela não quer, mas que têm a obrigação de querê-la. Ela persegue as alianças que marcam os pais de família que voltarão para casa frustrados por não serem capazes de ter aquela mulher. Ela insiste no jogo para me encontrar, para sermos uma só entidade.
E, como meu espetáculo sensorial não se restringe a imagens, sigo em frente. Longe das luzes, farejo por becos escuros, por vielas abandonadas onde não se deve caminhar sozinho. Mas ele sempre espreita porque sempre há uma desavisada – e elas têm sempre o perfume de flores e são tão lindas e seus gritos mais parecem cânticos de anjos quando ele as agarra pela raiz dos cabelos e as puxa para si. Eu me torno resistência e força e choro e roupas rasgadas e urgência e dor e morte e êxtase que não cessa até que a madrugada quebre seu silêncio e me leve consigo.
Eu sigo as vozes noturnas, me deixo levar pela batida hipnótica de uma bateria. No antro de luzes estroboscópicas, eu tenho sabor de álcool e suor, grito com a potência de riffs de guitarras e me estendo por uma multidão que se move num padrão caótico. Cada boca, cada mão, tudo é parte de mim, desde o centro da pista até as paredes, a massa como um único organismo, pulsando sob o meu ritmo – que é a música, a respiração pesada, a porta da cabine do banheiro batendo com violência contra a parede. É a minha força nos braços que a lançam lá dentro, é o meu desejo nas pernas que se enrolam nos quadris dele. Eu sou a única testemunha e a única razão.
Eu vejo, enquanto percorro caminhos e corredores, enquanto rastejo sob a sua pele. Eu corro nas suas veias, ganho vida no seu sangue, ganho o mundo com os seus excessos. No meu voyeurismo insaciável, eu acompanho e coordeno, toco seu espírito com o meu perfume. Mesmo que feche os olhos – eu ou você, não importa –, eu leio a sua alma.
E ela é sempre entregue.